No Brasil, cerca de 10% da população tem mais de 60 anos de idade, e as doenças cardiovasculares são a principal causa de mortalidade nos idosos (30%). Por isso, a medida que a expectativa de vida aumenta, compreender as nuances cardíacas específicas dessa população torna-se essencial para oferecer cuidados de qualidade e promover um envelhecimento saudável. Sendo assim, ao longo do texto falaremos sobre a cardiogeriatria.
O que é a cardiogeriatria?
A cardiogeriatria é definida como uma integração dos cuidados cardiovasculares com uma abordagem centrada e adequada aos pacientes idosos. Essa apresenta relevância porque a senescência, definida como o processo fisiológico do envelhecimento, cursa com uma diminuição da reserva funcional desses indivíduos, gerando maior propensão à descompensações do sistema cardiovascular, bem como de outros órgãos.
Particularidades da cardiogeriatria
O indivíduo idoso apresenta, fisiologicamente, um relaxamento ventricular prolongado e uma menor resposta beta-adrenérgica. Assim, há uma intensificação da resposta alfa-adrenérgica, promovendo uma redução do inotropismo (frequência cardíaca), do cronotropismo (força de contração dos miócitos) e da vasodilatação periférica.
O idoso comumente apresenta função cardíaca preservada em repouso, entretanto, devido a essas alterações, durante o estresse físico há uma dificuldade em aumentar o débito cardíaco e a frequência cardíaca. E ainda, apresenta menor sensibilidade aos barorreceptores e, por isso, tende a hipotensão ortostática.
Para mais, há um maior enrijecimento vascular. Isso ocorre devido às alterações nas respostas alfa e beta-adrenérgicas, pela menor produção de óxido nítrico, maior redução do componente elástico das camadas dos vasos sanguíneos, e devido a hipertrofia das células musculares lisas.
Dessa forma, a consequência do enrijecimento vascular é o aumento da pós-carga, definida pela tensão que a parede ventricular realiza para vencer a pressão aórtica diastólica, e essa - associada à redução do número de cardiomiócitos, atua promovendo uma hipertrofia dos miócitos remanescentes.
E ainda, há um aumento do depósito de cálcio nos vasos, no sistema de condução elétrico do coração e nas válvulas aórticas e mitrais, contribuindo para o enrijecimento vascular. Para mais, a hipertrofia promove uma onda de pulso - definida pela velocidade com que o sangue sai do ventrículo esquerdo e se desloca para a periferia - mais rápida, cursando com o retorno do sangue ao coração ainda na sístole.
Por isso, no idoso, é comum que a pressão arterial sistólica (PAS) esteja aumentada e, a pressão arterial diastólica (PAD), reduzida. Entretanto, é durante a PAD que ocorre a perfusão coronariana e, por isso, ela representa um importante componente ao avaliar o risco cardiovascular de indivíduos nesta faixa etária.
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Como funcionam os diagnósticos na cardiogeriatria?
Hipertensão arterial no idoso
A hipertensão arterial (HAS) é uma doença com alta prevalência nos idosos, atingindo mais de 60% desses. Entretanto, essa população apresenta baixa taxa de controle, menos de 50%. Assim, é imprescindível lembrar dos principais diagnósticos diferenciais comuns nesses pacientes.
São exemplos desses a síndrome da apneia obstrutiva do sono, a doença renal crônica e a doença renovascular, tendo a aterosclerose a como principal representante desta última. E ainda, as tireoidopatias. Em idosos, é mais comum a hipertensão arterial durante o exercício físico, bem como a hipertensão do jaleco branco e a hipertensão sistólica isolada.
E ainda, a pseudohipertensão é mais comum nesta faixa etária, sendo caracterizada pelo não colabamento da artéria braquial devido a uma aterosclerose significativa desse vaso. Entretanto, nesses casos, apesar dos níveis pressóricos muito elevados, não se observam repercussões centrais. Além disso, é mais frequente nos idosos a hipotensão ortostática e a hipotensão pós-prandial.
Estenose aórtica no idoso
No idoso, a sintomatologia mais comum da estenose aórtica é a dor torácica. A síncope também é comum, devido a redução da passagem do sangue do ventrículo esquerdo para a aorta, e a dispneia. Por isso, no paciente idoso, é importante realizar o diagnóstico diferencial da síncope com as doenças cerebrovasculares.
Também é preciso fazer o diagnóstico diferencial da dispneia com a insuficiência cardíaca (IC) e a fibrilação atrial (FA). Para mais, no exame físico, pode-se observar um sopro meso/telessistólico em B1, uma B2 hipofonética, e um sopro sistólico agudo com timbre musical no ápice cardíaco, denominado fenômeno de Gallavardin.
Após o diagnóstico da estenose aórtica, deve-se solicitar um ecocardiograma. Nesse exame, pode-se evidenciar uma dificuldade de ejeção do sangue pela válvula aórtica com calcificação dos folhetos, com área valvar ≤ 1 (0,6 cm/m2). E ainda, um gradiente médio - definido pela diferença de pressão entre dois locais - ventrículo esquerdo/aorta ≥ 40 mmHg e/ou velocidade de jato ≥ 4 m/s. E mais, uma hipertrofia de ventrículo esquerdo devido a sobrecarga pressórica e aumento do átrio esquerdo.
Insuficiência cardíaca no idoso
A maioria dos pacientes idosos (aproximadamente 70%) apresentam insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEp). Entretanto, no idoso, diferentemente do adulto, não há critérios ecocardiográficos precisos para o diagnóstico dessa condição.
Assim, tem-se a suspeita de ICFEp quando o idoso apresenta dispneia, intolerância aos esforços e quando se tem evidência no ecocardiograma de fração de ejeção preservada. E ainda, através da dosagem dos peptídeos natriuréticos (BNP e NT-pró-BNP). Observe a tabela abaixo.
Síndrome coronariana aguda no idoso
Octagenários representam 20% das hospitalizações devido a síndrome coronariana aguda (SCA), e 30% de todas as mortes hospitalares. Entretanto, os achados no eletrocardiograma são inespecíficos em 43% dos idosos com idade > 85 anos, o que dificulta o diagnóstico precoce da SCA.
Para mais, na apresentação clínica, menos da metade dos idosos apresenta a dor precordial típica, especialmente em pacientes mulheres e diabéticos. Assim, são mais comuns sintomas inespecíficos, como dispneia (24,9%), náuseas e vômitos (24,3%), síncope e pré-síncope (19,1%).
Fibrilação atrial no idoso
A fibrilação atrial (FA) é a arritmia mais comum no paciente idoso, especialmente em pacientes com mais de 80 anos, com uma prevalência de 8,8%. Os principais sintomas da FA são a intolerância ao exercício físico, fadiga e tosse seca. E ainda, dispneia, palpitações e sensação de “cabeça vazia”. Entretanto, o paciente também pode ser assintomático. Por fim, a principal complicação é o acidente vascular encefálico (AVE).
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Tratamentos na cardiogeriatria
Tratamento da hipertensão arterial no idoso
No paciente idoso robusto, inicia-se o tratamento com anti-hipertensivos quando a PA atingir valores de PAS ≥ 140 e/ou PAD ≥ 90 mmHg. Neles, as metas pressóricas devem ser < 140/80 mmHg. Já em pacientes mais frágeis, inicia-se o tratamento quando a PAS ≥ 160 e/ou PAD ≥ 90 mmHg, objetivando-se um alvo de tratamento < 150/80 mmHg. E mais, evitam-se valores de PAD < 70 mmHg devido ao maior risco cardiovascular.
Assim, são considerados boas combinações os bloqueadores de canal de cálcio di-hidropiridínicos associados à diuréticos tiazídicos, devido ao aumento da absorção de cálcio, prevenindo a osteoporose. Ou ainda, fármacos bloqueadores do sistema renina-angiotensina em pacientes com diabetes ou ICFEr.
Entretanto, a clonidina e outros vasodilatadores diretos podem aumentar os riscos de quedas. E ainda, o propranolol, por apresentar alta lipossolubilidade, atravessa com mais facilidade a barreira hematoencefálica, podendo agravar distúrbios do sono, pesadelos e insônia. Nesses casos, o bisoprolol apresenta menor lipossolublidade, representando uma possível opção de troca.
Tratamento da estenose aórtica no idoso
Para definir o tratamento da estenose aórtica, deve-se iniciar avaliando a gravidade anatômica dessa valva através do ecocardiograma. Isso porque, o tratamento definitivo consiste na troca valvar percutânea ou cirúrgica. Posteriormente, deve-se definir a etiologia da estenose aórtica: se degenerativa, bicúspide ou reumática.
Assim, caso o paciente seja oligossintomático, deve-se avaliar a presença dos seguintes fatores complicadores: fração de ejeção ventricular esquerda < 50%, hipertensão pulmonar, fibrilação atrial, disfunção ventricular ou eventos importantes (ex.: insuficiência cardíaca, tromboembolismo etc.). Se nenhum desses fatores estiverem presentes, realiza-se o seguimento de acordo com a etiologia.
Entretanto, quando o indivíduo apresenta algum desses fatores ou apresenta sintomatologia significativa, opta-se por realizar intervenções como o implante valvar percutâneo (TAVI), realizada por catéter, sendo esse o procedimento preferencial em pacientes > 70 anos.
Ou ainda, pode-se realizar a cirurgia aberta de troca valvar, comumente escolhida em pacientes < 70 anos e com baixo risco cardiovascular. Nesse, realiza-se a inserção de uma bioprótese ou uma prótese metálica. E mais, pode-se realizar a valvuloplastia aórtica por balão (VACB).
Tratamento da insuficiência cardíaca no idoso
Diferentemente das medicações utilizadas na insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFEr), na ICFEp não há muitas medicações disponíveis com mudança de prognóstico. Assim, os pilares terapêuticos são o controle das comorbidades e a diureticoterapia, essa última apresentando benefícios sintomáticos e de hospitalização.
Tratamento da síndrome coronariana aguda no idoso
Na escolha do antiplaquetário do idoso com SCA, recomenda-se o clopidogrel em pacientes com maior risco de sangramento. Já o ticagrelor deve ser utilizado com cautela, devido ao maior risco de bradiarritmias e dispneia. E mais, o prasugrel deve ser evitado em pacientes com > 75 anos. Para avaliar o risco de sangramento, é possível utilizar a calculadora CRUSADE.
Nos pacientes com síndrome coronariana aguda sem supra de ST e risco de sangramento aumentado, pode-se considerar menor tempo de dupla antiagregação (DAPT) plaquetária, suspendendo o antiplaquetário após 6 meses. Já nos pacientes submetidos à angioplastia, a DAPT pode ser realizada por 3 meses, seguida por monoterapia com ticagrelor.
Tratamento da fibrilação atrial no idoso
O pilar do tratamento da fibrilação atrial é a anticoagulação. Por isso, deve-se atentar às contraindicações relativas do paciente idoso à anticoagulação, como o maior risco de quedas, a síndrome demencial e a idade maior que 85 anos e, dessa forma, avaliar os riscos e benefícios na decisão do risco trombótico versus hemorrágico.
Assim, são escores úteis na decisão da anticoagulação o CHA2DS2VASc, que calcula o risco anual de AVE nesses pacientes. Um escore > 1 em homens e > 2 em mulheres já é uma indicação de iniciar o anticoagulante. Além disso, como é possível observar na tabela abaixo, pacientes homens com idade entre 65 e 74 anos já apresentariam indicação de iniciar a anticoagulação.
O escore HAS-BLED também pode ser utilizado para avaliar o risco de sangramento. Observe que, da mesma forma que o paciente idoso com 65 a 74 anos apresenta indicação de iniciar a anticoagulação pelo escore CHA2DS2VASc, o paciente com idade ≥ 65 anos também apresenta maior risco de sangramento pelo HAS-BLED.
Por isso, o escore HAS-BLED não deve ser utilizado para contraindicar a anticoagulação no paciente com FA, e sim, para auxiliar na avaliação de risco do sangramento. Além disso, os novos anticoagulantes orais (NOACS) reduziram os riscos de acidente vascular cerebral isquêmico e hemorrágico em relação à warfarina, especialmente em pacientes idosos, sendo importantes opções terapêuticas nesse público.
Conclusão
A cardiogeriatria é uma peça fundamental na geriatria, demandando dos profissionais uma visão holística e especializada. O entendimento das particularidades cardíacas dos idosos não apenas aprimora o diagnóstico e tratamento, mas também amplia a qualidade de vida e a longevidade.
Continue aprendendo:
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FONTES:
- DUARTE, P. O. AMARAL, J. R. G. Geriatria na Prática Clínica. 2ª ed. Barueri: Manole, 2022
- TARASOUTCHI, F., et al. Atualização das Diretrizes Brasileiras de Valvulopatias – 2020. Arq. Bras. Cardiol., v. 115, n. 4, p. 720-775, out 2020
- MARTINS, M. R. Manual do Residente de Clínica Médica. 2a edição. Barueri: Manole, 2017
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