A esclerodermia, também denominada esclerose sistêmica (ES), é uma doença heterogênea e com manifestações clínicas variadas. Tem curso crônico, e frequentemente progride para importante incapacitação, desfiguração e mortalidade. Além disso, praticamente todos os órgãos podem ser afetados.
O que é esclerodermia?
A esclerodermia é uma doença adquirida esporádica, e pacientes com parentes de primeiro grau apresentam risco 13 vezes maior de desenvolver a doença. Tem uma prevalência estimada de 9 a 46 casos para cada 1 milhão de pessoas ao ano, e acomete mais frequentemente mulheres (4.6:1). Pode ter início em em qualquer idade, mas apresenta pico de incidência entre 65 a 74 anos.
Etiopatogenia
A esclerodermia é uma doença poligênica e, para indivíduos suscetíveis, a exposição a agentes infecciosos como o parvovírus B19, vírus Epstein-Barr e citomegalovírus pode desencadear a doença. Além disso, exposições ocupacionais à sílica, cloreto de polivinila e fumaça de solda também podem deflagrar alterações genéticas estáveis hereditárias.
Dessa forma, três processos fisiopatológicos ocorrem: 1) microangiopatia difusa; 2) inflamação e autoimunidade; e 3) fibrose visceral e vascular em múltiplos órgãos. Assim, a autoimunidade e a microangiopatia ocorrem de forma mais precoce, e a fibrose é um processo que normalmente ocorre em estágios mais tardios da doença.
Microangiopatia
A lesão vascular inicial, no paciente geneticamente suscetível, irá cursar com uma produção desregulada de agentes vasodilatadores e vasoconstritores, promovendo uma ativação anormal da cascata de coagulação, fibrinólise deficiente e elevação da trombina.
Além disso, há uma proliferação das células miointimais, espessamento da camada média e da membrana basal, e fibrose da adventícia, processos esses que afetam principalmente pequenos (capilares) e médios vasos (arteríolas). Assim, ocorre uma diminuição do fluxo sanguíneo e isquemia tecidual, culminando com uma ausência marcante de vasos sanguíneos (rarefação) nos estágios tardios da doença.
Autoimunidade
O fator antinuclear (FAN) pode ser detectado por imunofluorescência indireta em quase todos os pacientes com esclerodermia, mesmo nos estágios iniciais da doença. Além disso, vários auto-anticorpos são específicos, e tem utilidade como marcadores diagnósticos e prognósticos.
Fibrose
Em condições normais, os fibroblastos, células responsáveis pela manutenção estrutural e funcional do tecido conectivo, quando ativados em situações de inflamação, se transdiferenciam em miofibroblastos contráteis. Entretanto, na doença, a ação dos fibroblastos se torna sustentada e amplificada, promovendo a fibrose patológica.
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Como é classificada?
A esclerodermia é subdividida de acordo com seu padrão de envolvimento e aspectos clínicos e laboratoriais em cutânea difusa (EScd) e cutânea limitada (EScl), que será abordada mais adiante. Observe a tabela abaixo com as principais diferenças clínicas entre as classificações.
Sintomas de esclerodermia
A esclerodermia sistêmica provoca outras diversas alterações metabólicas, hereditárias e autoimunes, podendo qualquer órgão ser acometido. O fenômeno de Raynaud, comum em ambas as formas difusa e limitada, precede em pouco tempo o aparecimento de outros sintomas sistêmicos.
Fenômeno de Raynaud
O fenômeno de Raynaud é a complicação extra cutânea mais frequente. É caracterizado por uma vasoconstrição das mãos e dos pés, podendo afetar também a ponta do nariz e o lobo da orelha, de forma reversível. Pode ser deflagrada por diminuição na temperatura, estresse emocional ou vibrações na pele.
Assim, o quadro tem início com palidez (vasoconstrição), sendo precedido por cianose (isquemia) e, posteriormente, hiperemia (reperfusão), de duração variável. Entretanto, até 5% da população com o fenômeno de Raynaud apresentam a forma primária (doença de Raynaud), definida como uma resposta fisiológica exagerada ao frio.
São fatores que sustentam a hipótese de doença de Raynaud a ausência de causa subjacente, história familiar, a ausência de necrose ou ulceração nos dedos e o FAN negativo. Já o fenômeno de Raynaud secundário tem acometimento mais tardio (> 30 anos), apresentação clínica mais grave - episódios mais dolorosos, prolongados e frequentes - e é comumente associado a úlceras digitais isquêmicas.
E mais, para distinguir os pacientes com fenômeno de Raynaud secundário e primário, pode-se utilizar a capilaroscopia periungueal. Consiste na utilização do oftalmoscópio ou do microscópio estereoscópico para possibilitar a visualização dos capilares cutâneos da região ungueal, imersa em óleo.
Assim, a doença de Raynaud está associada a capilares periungueais distorcidos, com alças ampliadas e irregulares, bem como presença de lúmen dilatado e micro-hemorragias. Observe na imagem abaixo o “padrão inicial”: mostrando microvasos simetricamente aumentados; o “padrão ativo”: com capilares gigantes, micro-hemorragias e perda de capilares; e o “padrão tardio”: mostrando fibrose.
Manifestações cutâneas
O espessamento cutâneo simétrico e bilateral é a principal característica da disfunção. O acometimento da pele tem início nas partes mais distais dos membros (dedos, mãos e face), progredindo para as extremidades mais proximais e para o tronco, de maneira ascendente.
A presença de edema de tecidos moles, puffy fingers (“dedos inchados”) e prurido importante são sinais da fase inflamatória “edematosa” inicial da doença. Ao longo de semanas a meses, a fase “edematosa” progride para a fase “fibrótica”, e o paciente evolui com o endurecimento da pele, perda dos pelos, diminuição da oleosidade cutânea e da produção de suor.
E mais, pode haver hiperpigmentação da pele na ausência de exposição solar e, em pacientes negros, pode haver o surgimento de manchas hipopigmentadas similares ao vitiligo. E ainda, a presença de telangiectasias podem ser observadas na face, mãos, lábios e mucosa oral, e se correlacionam com a gravidade da doença microvascular e com o acometimento pulmonar.
Além disso, a face assume aspecto de “cabeça de rato”, com a pele esticada e brilhante. Há perda das rugas, fácies sem expressão - devido a mobilidade reduzida da musculatura - e afinamento dos lábios com acentuação dos dentes incisivos. E mais, há uma microstomia (abertura perioral reduzida), podendo interferir na saúde oral e na alimentação. Por fim, o nariz apresenta aspecto semelhante a bico.
Por fim, as úlceras ungueais, decorrentes da vasculopatia são dolorosas, tem cicatrização demorada e podem infectar, evoluindo para osteomielite. Por fim, calcificações distróficas na pele, no tecido subcutâneo e nos tecidos moles (calcinose cutânea), mesmo com valores normais de cálcio e fósforo, podem acometer os pacientes.
Manifestações músculo cutâneas
Com o início da fase fibrótica da doença, surgem contraturas progressivas em flexão dos dedos, punhos e cotovelos, bem como em ombros, bacia e joelho, devido a fibrose das estruturas articulares, com consequente redução da mobilidade articular. E mais, o paciente pode evoluir com artralgias, síndrome do túnel do carpo, enfraquecimento muscular e fadiga.
Manifestações pulmonares
As duas principais formas de envolvimento pulmonar na esclerodermia são a doença pulmonar intersticial (DPI) e a hipertensão arterial pulmonar (HAP). São sintomas comuns a dispneia por esforços, fadiga e a tosse seca crônica. Além disso, os pacientes com HAP podem evoluir com angina, pré-síncope e sinais e sintomas de insuficiência cardíaca de lado direito.
As complicações pulmonares são as principais causas de morte no paciente com esclerodermia. Por isso, no diagnóstico da doença, todos os pacientes devem ser submetidos a um rastreamento inicial, seguido de um rastreio anual. Um aumento da pressão pulmonar sistólica > 40 mmHg em repouso, ou a presença de velocidades de jato de regurgitação tricúspide > 3 m/s, no ecocardiograma, sugerem HAP.
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Manifestações do trato gastrointestinal
Até 90% dos pacientes com ES irão apresentar algum grau de acometimento do trato gastrointestinal. A abertura oral diminuída pode provocar piora na higiene oral, e os dentes se tornam amolecidos devido a perda do ligamento que fixa a arcada dentária ao osso alveolar. Além disso, a maioria dos pacientes irão apresentar os sintomas clássicos de refluxo gastroesofágico: pirose, regurgitação e disfagia.
Manifestações renais da esclerodermia
As manifestações renais, quando presentes, são acompanhadas de lesão renal aguda e insuficiência renal oligúrica progressiva, e se manifestam através da presença de uma hipertensão acelerada (> 150/90 mmHg). No exame de urina, podem ser observadas proteinúria discreta, cilindros granulosos e hematuria microscópica.
E mais, pode haver presença de trombocitopenia moderada e hemólise angiopática, com hemácias fragmentadas podendo ser visualizadas no esfregaço de sangue periférico. Assim, as manifestações renais acometem cerca de 10 a 15% dos pacientes e, em geral, ocorrem em até 4 anos após o surgimento da doença.
Diagnóstico da esclerodermia
O diagnóstico de ES é primariamente clínico. A presença de endurecimento da pele com padrão de distribuição simétrica característico, associado a manifestação orgânica visceral típica, estabelece o diagnóstico com alto grau de certeza.
Tratamentos da esclerodermia
Até o momento, nenhuma terapia disponível conseguiu modificar a história natural da doença na esclerodermia. Imunossupressores, como os glicocorticoides, auxiliam no alívio da rigidez e da dor na ESCD ainda no estágio inflamatório inicial. Entretanto, o corticoide deve com cautela, na menor dose possível e por período curto de tempo, devido ao risco de desencadear uma crise renal esclerodérmica.
Para mais, a fisioterapia e a terapia ocupacional podem ser efetivas para prevenir perda de função musculoesquelética e contraturas articulares, devendo ser iniciadas precocemente.
Já a terapia vascular consiste em controlar o fenômeno de Raynaud, orientando o paciente sobre o uso de roupas quentes, minimizar exposição ao frio e evitar fármacos que exacerbam o vasoespasmo. O uso de bloqueadores do receptor da angiotensina II e os bloqueadores de canal de cálcio de liberação prolongada dihidropiridínicos são benéficos para esses pacientes.
Já as úlceras vasculares devem ser protegidas por curativos oclusivos para promover cicatrização e prevenir infecções. As úlceras infectadas devem ser tratadas com antibioticoterapia e desbridamento cirúrgico. Por fim, o tratamento da crise renal aguda, da HAP/DIP e das complicações gastrointestinais não serão abordadas neste artigo.
Conclusão
A esclerodermia é uma doença complexa, de evolução crônica, que pode comprometer múltiplos sistemas e órgãos, resultando em grande morbidade e mortalidade. Apesar dos avanços no entendimento de sua fisiopatologia e da disponibilidade de tratamentos que ajudam no controle dos sintomas, ainda não há cura ou terapias capazes de alterar significativamente sua progressão natural.
Continue aprendendo:
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FONTE:
- FAUCI, Jameson. et al. Medicina Interna de Harrison. Porto Alegre: AMGH, 2020.
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