A mielite transversa é uma condição neurológica rara, mas potencialmente debilitante, que afeta a medula espinhal, comprometendo sua função. Seu nome deriva de "mielite" (inflamação da medula espinhal) e "transversa" (indicando que o processo inflamatório ocorre em uma seção transversal da medula). A doença pode se manifestar de forma aguda ou subaguda, com sintomas neurológicos variados, dependendo do nível afetado. Nesse artigo, iremos abordar os principais aspectos dessa condição, desde suas causas e sintomas até o diagnóstico e tratamento mais indicado.
O que é mielite transversa?
A mielite transversa é uma inflamação da medula espinhal, na qual tipicamente abrange vários segmentos vertebrais, que interrompe as vias neurais ascendentes e descendentes, o que está relacionada com a possibilidade de inúmeros acometimentos sensoriais, motores e autonômicos agudos e subagudos. Embora tenha uma incidência baixa, com cerca de 1 a 8 casos por milhão de pessoas, ela é reconhecida como uma emergência neurológica.
Ela pode ser classificada quanto à gravidade clínica, no envolvimento relativo da substância cinzenta da medula espinhal e na extensão longitudinal da lesão da medula. São elas:
Mielite transversa parcial aguda
Caracteriza-se por disfunção medular leve ou moderadamente assimétrica, com lesão detectada na ressonância magnética (RM) limitada a um ou dois segmentos vertebrais.
Mielite transversa aguda completa
Apresenta disfunção medular grave, resultando em déficits neurológicos simétricos e significativos (como paresia, perda sensorial e disfunção autonômica) abaixo do nível da lesão. Na RM, a lesão corresponde a uma extensão de um ou dois segmentos vertebrais.
Mielite transversa longitudinalmente extensa
Envolve disfunção medular completa ou parcial, com lesão correspondente na RM que abrange três ou mais segmentos vertebrais. Além disso, os casos podem ser classificados como idiopáticos ou secundários a outras condições, como doenças autoimunes, infecções ou neoplasias.
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Causas
Como foi dito anteriormente, a mielite transversa pode estar relacionada com diversas causas, como doenças autoimunes, infecções, reações paraneoplásicas, distúrbios desmielinizantes do Sistema Nervoso Central (principal causa).
Distúrbios desmielinizantes do SNC
Dentre os distúrbios do SNC, os que cursam com mielite transversa são:
- Esclerose Múltipla: pode ocorrer como parte do espectro da esclerose múltipla. Em alguns casos pode inclusive ser o evento desmielinizante inicial, ou surgir durante o desenvolvimento da doença.
- Transtorno do espectro da neuromielite óptica (NMO): frequentemente associado à mielite transversa, juntamente com a neurite óptica.
- Encefalomielite disseminada aguda: trata-se de uma doença desmielinizante do SNC que tipicamente se manifesta com sintomas neurológicos multifocais e encefalopatia.
Doenças autoimunes sistêmicas
Existem várias doenças autoimunes que podem causar mielite transversa, as mais comuns são:
- Doença de Sjogren
- Lúpus Eritematoso Sistêmico
- Sarcoidose
Infecções
- Vírus: hepatite A, hepatite B, hepatite C, hepatite E, sarampo, caxumba, rubéola, vírus varicela zóster, vírus Epstein-Barr, citomegalovirus, influenza A/B, vírus herpes simplex, vírus da coriomeningite linfocítica, vírus chikungunya, vírus Hanta, HIV, vírus linfotrópico de células T humanas, vírus herpes humano 6, encefalite (japonesa, Murray Valley, St. Louis e encefalite transmitida por carrapatos), vacínia, febre maculosa das Montanhas Rochosas, dengue, enterovírus 71, vírus coxsackie A e B, vírus do Nilo Ocidental, parvovírus B19, vírus corona humano e echovirus.
- Bactérias: Mycoplasma pneumoniae (pneumonia), Campylobacter jejuni (enterocolite por Campylobacter), Borrelia burgdorferi (doença de Lyme), Acinetobacter baumannii, Coxiella burnetii (febre Q), Bartonella henselae (doença da arranhadura do gato), Chlamydia psittaci, Leptospira (leptospirose), Chlamydia pneumoniae, Legionella pneumonia, Orientia tsutsugamushi (tifo silvestre), Salmonella paratyphi B, Mycobacterium tuberculosis, Treponema pallidum, Brucella melitensis (brucelose), estreptococos do grupo A e estreptococos do grupo B
- Fungos: Actinomyces, Blastomyces, Coccidioides, Aspergillus, Cryptococcus e Cladophialophora bantiana.
- Parasitas: Schistosoma (esquistossomose), Gnathostoma spinigerum, Echinococcus granulosus, Taenia solium, Toxoplasma gondii (toxoplasmose), espécies de Acanthamoeba, Paragonimus westermani (paragonimíase) e Trypanosoma brucei (tripanossomíase africana).
Síndromes paraneoplásicas
Estão associadas a neoplasias, como câncer de pulmão ou linfoma, que desencadeiam respostas imunes anormais.
Vacinações
Foi relatado que a mielite transversa ocorreu em associação com a vacinação. Embora seja extremamente raro, casos isolados foram documentados com a administração de vacinas contra hepatite B, influenza e COVID-19.
Idiopática
Representando cerca de 15% a 30% de todos os casos de mielite transversa, sendo classificada assim quando não possui nenhuma causa identificada.
Quais os sintomas?
A doença afeta a função da medula espinal em um ou mais níveis, podendo ser total ou incompleta, e causa uma síndrome segmentar. Além disso, elas podem surgir de forma súbita ou progressiva. Normalmente, apresentam sintomas sensoriais, como dormência, e sintomas motores, (como paresia ou paralisia), abaixo de um nível específico da medula espinhal, de forma bilateral e simétrica (apresentação mais comum) ou assimétrica.
Em uma pesquisa que reuniu informações de mais de 470 pessoas com a doença, a ordem dos sintomas mais comuns foram: Mudança sensorial (39%); fraqueza (25%) e Dor, principalmente nas costas (22%).
Para mais, sintomas autonômicos também podem estar presentes, como: incontinência ou retenção urinária; incontinência intestinal ou constipação; disfunção sexual e termorreguladora; sintomas gastrointestinais e sintomas cardiovasculares. A progressão dos sintomas pode ser rápida, o que faz com que o diagnóstico precoce seja crucial para evitar danos permanentes.
Como diagnosticar a mielite transversa?
O diagnóstico da mielite transversa envolve a combinação de história clínica, exame neurológico e exames complementares.
História Clínica e exame físico
O diagnóstico da mielite transversa deve ser suspeitado com sintomas e sinais agudos ou subagudos mencionados anteriormente. A partir desses exames, é necessário investigar se a condição clínica do paciente é provavelmente uma mielopatia. A história do paciente deve ser explorada: questionar sobre a história de infecções; vacinações recentes; doenças autoimunes ou do sistema nervoso central; câncer; sintomas neurológicos; traumas físicos; uso de drogas e exposição a toxinas.
Quanto ao exame físico, a localização da disfunção neurológica é imprescindível. Lesões da medula espinhal devem ser suspeitadas quando há sinais ou sintomas motores e/ou sensoriais que não envolvem a cabeça ou o rosto. Porém, deve-se ficar atento às manifestações motoras oculares, por estar relacionadas a doenças desmielinizantes que afetam o tronco cerebral e/ou cerebelo.
O médico deverá identificar um nível sensorial medular, com sensação normal acima e sensação reduzida ou ausente abaixo desse nível, e isso deve ser procurado especificamente.
ATENÇÃO! Qualquer paciente com um nível sensorial relatado ou identificado deve ser considerado como tendo uma mielopatia até que se prove o contrário.
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Realização de exame
Quando há suspeita de mielopatia, a realização de exame de imagem deve ser realizada o mais rápido possível, a fim de que possa excluir uma lesão compressiva e para distinguir entre os diferentes tipos de mielopatia.
O exame de escolha e padrão-ouro para identificar lesões inflamatórias na medula espinhal é a RNM de toda a coluna, com e sem gadolínio.

Na imagem acima, pode ser visto sequências ponderadas em T2 de RM sagital (A), notável, hipersinal central com limites mal definidos (seta), além de aumento volumétrico do cone medular obliterando a coluna anterior e posterior do LCR. A sequência ponderada em T1 com contraste demonstra realce heterogêneo com padrão "arborizado" (seta em B).
Além da RNM, será necessário também:
- Punção lombar e análise do Líquido Cefalorraquidiano (LCR): para detectar pleocitose ou índice elevado de IgG que suporte inflamação da medula espinhal.
- RNM do cérebro (com e sem realce de gadolínio): pois nos ajudará na identificação das doenças desmielinizantes.
- Exames de sangue: também será muito útil para identificar a causa da mielite transversa ou condições comórbidas. Os exames que auxiliam no diagnóstico são: Vitamina B12, ácido metilmalônico; anticorpos anti-HIV; sorologia de sífilis; TSH e T4 livre. Outros testes adicionais podem ser solicitados, como PCR; anticorpos antinucleares, fator reumatoide.
O diagnóstico diferencial deve incluir principalmente doenças compressivas (como tumores), abscessos e outras mielopatias.

Tratamento para a mielite transversa
O principal objetivo do tratamento é interromper a progressão e acelerar a resolução da lesão inflamatória da medula espinhal. Os principais medicamentos para o tratamento da mielite transversa são os corticoides intravenosos em altas doses, como o metilprednisolona 1g/dia intravenoso por 3-7 dias.
Além disso, para pacientes com episódios leves e que não requerem internação, os regimes de corticosteroides orais podem ser prescritos: metilprednisolona 1g/dia intravenoso por 3-7 dias; dexametasona 160-200 mg/dia por via oral por 3-7 dias; prednisona 1250 mg/dia por via oral por 3-7 dias.
Para os pacientes que não responderem à terapia inicial com corticosteroide, comprometimento motor significativo e condições associadas (como neuromielite óptica) considere a terapia de troca de plasma (plasmaférese), chamado de regime PLEX. Normalmente, o PLEX é realizado em sessões seriadas (geralmente 5 a 7), com intervalos de 1 a 2 dias entre cada sessão. Durante cada sessão, cerca de 1 a 1,5 vezes o volume plasmático total do paciente é trocado.

É importante ressaltar que nas mielites transversas secundárias, o tratamento também deve ser voltado para a doença base. Por exemplo, nos casos de Mielite transversa secundária a LES, cabe adicionar ao tratamento a ciclofosfamida, enquanto que na mielite relacionada à distúrbios paraneoplásicos, a remissão a longo prazo é baseada na terapia direcionada à malignidade.
Conclusão
A mielite transversa é uma condição neurológica inflamatória rara, porém grave, que afeta a medula espinhal, resultando em déficits sensoriais, motores e autonômicos. Pode ter diferentes causas, como doenças autoimunes, infecções e reações paraneoplásicas, além de ser idiopática em alguns casos. Seu diagnóstico baseia-se na história clínica, exame neurológico e exames complementares, como ressonância magnética e análise do líquido cefalorraquidiano. O tratamento inclui o uso de corticoides em altas doses, plasmaférese para casos refratários e abordagens direcionadas às condições subjacentes, quando presentes. O manejo precoce é essencial para minimizar sequelas permanentes.
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FONTE:
- Therapeutic apheresis (plasma exchange or cytapheresis): Indications and technology – UpToDate.
- Guidelines on the Use of Therapeutic Apheresis in Clinical Practice-Evidence-Based Approach from the Writing Committee of the American Society for Apheresis: The Seventh Special Issue – Journal of clinical apheresis.
- DynaMed. Transverse Myelitis. EBSCO Information Services. Accessed 1 de dezembro de 2024. https://www.dynamed.com/condition/transverse-myelitis
- Choi KH, Lee KS, Chung SO, et al. Idiopathic transverse myelitis: MR characteristics. AJNR Am J Neuroradiol. 1996;17:1151-60.
- Lopez Chiriboga S, Flanagan EP. Myelitis and Other Autoimmune Myelopathies. Continuum (Minneap Minn) 2021; 27:62.
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