O pâncreas é uma glândula fundamental na digestão e a regulação glicêmica, por isso, a pancreatite, caracterizada por uma inflamação no parênquima pancreático, pode provocar complicações sistêmicas graves. Nos últimos anos, o entendimento sobre ela, suas causas e mecanismos de ação tem avançado significativamente, proporcionando uma abordagem mais eficaz para o diagnóstico e tratamento.
O que é a pancreatite?
A pancreatite é uma das doenças gastroenterológicas mais comuns, com incidência de 5 a 80 casos para cada 100.000 habitantes. É uma doença inflamatória de causa não bacteriana, e ocorre devido a liberação de enzimas próprias do pâncreas no interstício, cursando com autodigestão do órgão.
Classificação
Existem duas formas principais: aguda e crônica. A pancreatite aguda é uma condição súbita e geralmente reversível, enquanto a pancreatite crônica é um processo inflamatório de longa duração que pode levar à destruição permanente do tecido pancreático e à perda funcional progressiva.
Causas da pancreatite
A maioria dos casos de pancreatite se dão por cálculos biliares (pancreatite biliar) ou devido ao alcoolismo. Para além desses, são possíveis causas a hiperlipidemia, o pós-operatório e a deficiência de proteínas. E ainda, são etiologias relevantes a pancreatite familiar e a pancreatite idiopática. Observe a tabela abaixo.
Pancreatite biliar
A pancreatite biliar corresponde a 40% dos casos, e está associada à litíase biliar. Decorre da obstrução transitória da ampola de Vater e do ducto pancreático, gerando edema e aumento da pressão intraductal, desencadeando o processo inflamatório. Quando não tratada, na maioria dos casos irá cursar com outras crises agudas, tendo como principal manifestação a cólica biliar.
Pancreatite alcoólica
O alcoolismo é responsável por cerca de 40% dos casos, e corresponde à principal causa de pancreatite crônica. O consumo de álcool estimula o espasmo do esfíncter de Oddi, que corresponde à musculatura lisa que envolve a ampola de Vater, na junção do ducto pancreático e biliar comum. Observe a imagem abaixo.
Para mais, classicamente, os pacientes são consumidores crônicos de bebidas com alto teor de álcool. É comum desenvolver sintomas após muitos anos de ingesta - cerca de 6 a 10 anos. Assim, a pancreatite alcoólica é menos frequente em países onde a cerveja é a bebida mais popular.
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Hipercalcemia
Doenças que provoquem hipercalcemia (cálcio > 10,5 mg/dL), como o hiperparatireoidismo, doenças malignas e do metabolismo ósseo, podem apresentar a pancreatite como complicação. Isso porque a concentração elevada de cálcio no suco pancreático ativa precocemente as proteases e facilita a precipitação de cálculos nos ductos pancreáticos.
Pancreatite induzida por medicamentos
Os medicamentos mais comumente responsáveis pelo surgimento de pancreatite aguda são os corticoides, a azatioprina e os diuréticos tiazídicos. E ainda, as tetraciclinas e os contraceptivos com estrogênio, sendo esse último resultado de uma hipertrigliceridemia induzida pelo hormônio. Todavia, o mecanismo para os demais medicamentos ainda é desconhecido. Observe a tabela abaixo.
A unidade funcional do pâncreas é o ácino e, por meio desse, são secretadas pró-enzimas e tripsinogênio. Comumente, a ativação das proenzimas ocorre após sua liberação no duodeno. Assim, a pancreatite ocorre quando a ativação dessas enzimas ocorre dentro das células acinares.
A ativação dessas enzimas no tecido pancreático provoca edema, fenômenos vasculares e hemorrágicos. Além disso, promove também necrose da gordura pancreática e peripancreática, bem como alterações à distância, especialmente em pulmões e rins.
Sintomas da pancreatite
Pancreatite aguda
A crise aguda da pancreatite é caracterizada pela dor epigástrica intensa com irradiação para o dorso. É comumente contínua, associada a náuseas e vômitos. Muitas vezes, há relação do início dos sintomas com ingestão de alimentos gordurosos ou de álcool. Para mais, a depender da gravidade da doença, o paciente pode se apresentar com desidratação profunda, taquicardia e hipotensão postural.
Ao exame abdominal, pode-se evidenciar ruídos hidroaéreos diminuídos e dor à palpação generalizada, com predominância na região epigástrica. Quando é possível palpar massa abdominal, essa corresponde ao pâncreas inflamado (flegmão), ou ainda, a um pseudocisto pancreático ou abscesso.
Para mais, em cerca de 1% a 2% dos casos, é possível observar uma coloração azulada em flanco (sinal de Grey Turner) ou na região periumbilical (sinal de Cullen), que indicam pancreatite hemorrágica com dissecção retroperitoneal do sangue para essas localizações.
Dessa forma, a pancreatite apresenta uma ampla gama de manifestações clínicas e, apesar da maioria dos casos serem classificados como leves (90%), é crucial identificar os pacientes com maiores riscos de gravidade. Essa classificação pode ser feita através dos critérios de Ranson, descritos na tabela abaixo.
Para mais, outro critério utilizado é o de Balthazar, que se baseia nos achados da tomografia computadorizada para definir o grau de comprometimento pancreático. Permite avaliar a extensão do processo inflamatório, o grau de necrose pancreática, a presença de coleções e infecções. Por esse critério, é classificado como grave o paciente com escore de Balthazar ≥ 7.
É Preciso dizer que, diante desses critérios, as pontuações são interpretadas da seguinte maneira:
- 0 – 3 pontos = 3% de mortalidade e 8% de morbidade
- 4 – 6 pontos = 6% de mortalidade e 35% de morbidade
- 7 – 10 pontos = 17% de mortalidade e 92% de morbidade
Pancreatite crônica
Já na pancreatite crônica, os sintomas são mais insidiosos. A esteatorreia pode estar presente, devido a à insuficiência exócrina, bem como a perda de peso devido a má absorção e anorexia associada à dor abdominal crônica. E ainda, o paciente com pancreatite crônica pode desenvolver diabetes mellitus, devido a destruição das células beta.
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Como realizar o diagnóstico?
A amilase sérica é o teste mais utilizado para o diagnóstico, e encontra-se aumentado em cerca de 2,5 vezes o valor normal em prazo de 6 horas desde o início dos sintomas, permanecendo elevado por alguns dias. É característico da pancreatite biliar valores de amilase > 1.000 UI/dL e, na pancreatite alcoólica, os valores costumam ser < 1.000 UI/dL.
Assim, a sensibilidade da amilase é de 55% a 80% para o diagnóstico de pancreatite, e 70% dos pacientes com dor abdominal e hiperamilasemia têm pancreatite. Entretanto, a concentração da amilase não tem relação com a gravidade da doença. Além disso, outras causas de abdome agudo, como a isquemia mesentérica e a úlcera perfurada também podem cursar com níveis séricos aumentados de amilase.
Para mais, a lipase é outra enzima bastante utilizada para diagnosticar a pancreatite, sendo mais sensível que a amilase (85% a 100%) e permanecendo elevada por mais tempo. Assim, valores 3 vezes superiores ao limite da normalidade tem sensibilidade e especificidade próximas a 100% no diagnóstico da pancreatite aguda.
O hematócrito do paciente frequentemente está elevado, seja devido a desidratação, ou à perda de sangue abdominal na pancreatite hemorrágica. Além disso, geralmente há leucocitose, bem como aumento da bilirrubina total, em geral < 2 mg/dL. Por fim, as enzimas hepáticas comumente apresentam valores normais.
A tomografia computadorizada (TC) é o padrão-ouro para avaliação da pancreatite, sendo útil para determinar a extensão da inflamação, presença de necrose, pseudocistos e outras complicações. Entretanto, a ultrassonografia é frequentemente utilizada como primeira linha para identificar cálculos biliares, apesar da baixa sensibilidade pela interposição do duodeno.
Tratamento da pancreatite
O tratamento da pancreatite aguda possui três objetivos: 1) identificação da etiologia para evitar a recidiva da doença; 2) tratamento sistêmico da doença, e; 3) tratamento local do pâncreas. Dessa forma, as medidas iniciais consistem no jejum oral, hidratação parenteral e na analgesia sistêmica.
Tratamento da pancreatite aguda não-grave
O tratamento da pancreatite aguda leve é clínico, e objetiva a restauração do equilíbrio hidroeletrolítico e a redução do estímulo pancreático. Assim, o paciente deve permanecer em jejum até a melhora da dor ou a resolução do íleo paralítico. Para mais, a analgesia é de suma importância.
Tratamento da pancreatite aguda grave
O paciente com pancreatite aguda grave deve ser mantido com suporte nutricional, preferencialmente com a sonda nasoenteral. Para mais, a infecção pancreática ou peripancreática ocorre em 40% a 70% dos indivíduos com necrose pancreática, sendo a principal causa de mortalidade neste grupo de pacientes.
Por isso, a antibioticoterapia é recomendada para os pacientes com índice de Balthazar > 5, quando a punção por agulha fina for positiva (necrose infectada) ou quando houver presença de gás peripancreático. Nesses casos, recomenda-se o imipenem (1ª escolha) ou a associação do ciprofloxacina com metronidazol (2ª escolha).
Para mais, a colangiopancreatografia endoscópica (CPRE) é indicada para os pacientes com pancreatite biliar ou colangite, com objetivo de desobstruir a via biliar nestes pacientes. Já o tratamento cirúrgico é indicado apenas para pacientes com coleção, necrose infectada, ou abscesso pancreático.
Tratamento da pancreatite crônica
A abordagem da pancreatite crônica inclui o controle da dor, suplementação enzimática pancreática para tratar a insuficiência exócrina, e o controle do diabetes mellitus. Em alguns casos, procedimentos cirúrgicos podem ser indicados para aliviar a obstrução dos ductos pancreáticos ou remover tecido necrosado.
Conclusão
A pancreatite é uma condição clínica complexa que requer uma abordagem multidisciplinar para o diagnóstico e tratamento eficazes. Embora as formas leves de pancreatite possam ser autolimitadas, os casos graves podem levar a complicações significativas e à falência de órgãos, sublinhando a importância de uma intervenção precoce e adequada.
Continue aprendendo:
- Isquemia intestinal: o que é, fisiopatologia, sintomas e tratamento
- Doença celíaca: fisiopatologia, diagnóstico e tratamento
- Trombocitopenia: causas, sintomas e tratamento
FONTES:
- GAMA-RODRIGUES, J. J., et al. Clínica Cirúrgica. 4ª edição. Barueri: Manole, 2018.
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