É sempre importante que médicos e estudantes que lidam com pacientes cirróticos em estado avançado com ascite fiquem atentos aos sinais e sintomas de Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE). Seu reconhecimento precoce é essencial para um bom prognóstico, uma vez que seu diagnóstico tardio pode resultar em choque e falência de órgãos multissistêmicos. Nesse artigo, iremos abordar os principais aspectos dessa doença tão importante para uma adequada formação médica.
O que é peritonite bacteriana espontânea?
A peritonite bacteriana espontânea é definida como uma infecção aguda do líquido ascítico, sem uma fonte intra-abdominal, tratável cirurgicamente, em pacientes com cirrose em estado avançado. A ascite, a qual consiste em um acúmulo anormal de líquido de aspecto seroso na cavidade peritoneal, é a principal complicação crônica nos pacientes cirróticos.
As bactérias mais comuns que causam PBE são Escherichia coli e Klebsiella pneumoniae, Gram-negativos, além do Streptococcus pneumoniae, Gram-positivo.
Fisiopatologia
O termo peritonite bacteriana espontânea foi dado porque a patogênese da doença não era muito bem conhecida. Atualmente, ocorreram evoluções no entendimento de sua fisiopatologia. Pacientes com cirrose tendem a apresentar redução da motilidade do intestino delgado, hipocloridria (redução da produção de ácido clorídrico) e aumento da permeabilidade intestinal. Diante disso, surge um ambiente favorável para o supercrescimento bacteriano, principalmente da E. coli.
Tais bactérias podem realizar uma disseminação extra-intestinal e colonizar gânglios linfáticos mesentéricos, fenômeno chamado de translocação. A infecção do líquido ascítico se dá a partir de rompimentos dos gânglios ou pela migração bacteriana para a circulação sistêmica.
Apesar de ser a forma mais frequente, já foram documentadas outras formas de desenvolvimento da doença. A disseminação tem maiores chances de acontecer em uma superprodução, mas não significa que não possa acontecer em números normais.
Além disso, a imunidade prejudicada no contexto de cirrose e a ascite são fatores positivos para o desenvolvimento da PBE, pois gera um ambiente que facilita a persistência da infecção peritoneal. Isso ocorre porque a doença cirrótica está relacionada com uma deficiência do complemento sérico; deficiência de opsoninas e da diminuição da função de macrófagos.
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Fatores de risco
Como já foi explicado, a cirrose avançada é o principal fator de risco para a peritonite bacteriana espontânea. Quanto maior a pontuação do Modelo para Doença Hepática em Estágio Final (MELD), maior o risco. O cálculo do MELD é feito a partir dos valores da creatinina, bilirrubina, INR e sódio do paciente.
Outros fatores de risco também merecem atenção, como:
- Concentração de proteína total no líquido ascítico menor que 1g/dL;
- Episódios anteriores de PBE;
- Concentração sérica de bilirrubina maior que 2,5 mg/dL;
- Desnutrição;
- Hemorragia varicosa;
- Uso de inibidores de bomba de prótons;
- Uso de betabloqueadores não seletivos.
É preciso dizer que a hipocloridria em pacientes com cirrose está relacionada principalmente com o uso de inibidores de bomba de prótons. Além disso, a ocorrência de infecção urinária e infecções em outros sítios; procedimentos invasivos com sonda e cateteres e sangramentos gastrointestinais agudos são fatores mencionados na literatura que também aumentam a chance de apresentação do problema.
Quais são os sinais e sintomas?
A suspeita de peritonite bacteriana espontânea deve surgir nos pacientes com cirrose avançada e ascite que manifestam sintomas como febre, dor abdominal; rebaixamento do estado mental; diarreia; íleo paralítico; hipotensão e hipotermia. Desses sintomas, o mais prevalente é a febre. Muitos pacientes com cirrose avançada desenvolvem hipotermia leve. Dessa forma, uma temperatura ≥ 37,8ºC não pode ser subestimada.
Já que, muitas vezes, os sintomas podem ser sutis, não é raro médicos se depararem com casos de PBE sem identificar nenhum sinal ou sintoma. Por isso, é válido ficar em alerta para possíveis alterações laboratoriais, condizentes com infecções, como leucocitose, acidose metabólica e azotemia. Os casos de peritonite em abdômen não ascítico causa rigidez na parede abdominal, porém nos casos de ascite, essa rigidez não é vista.
Diagnóstico da peritonite bacteriana espontânea
Diante da suspeita de peritonite bacteriana espontânea, o paciente deve ser submetido à paracentese para procurar evidências da doença. Porém, mesmo sem sintomas, a presença de ascite por si só já justifica a realização desse procedimento. Isso pode ser dito porque a realização de paracentese de forma precoce, ainda mesmo na admissão hospitalar, leva à detecção precoce de PBE.
A paracentese deve ser feita com o objetivo de análise dos seguintes aspectos do líquido ascítico:
- Cultura aeróbica e anaeróbica
- Contagem de células e diferencial
- Coloração de Gram
- Albumina
- Proteína
- Glicose
- Lactato desidrogenase
- Amilase
- Bilirrubina (quando o líquido estiver laranja escurecido ou marrom)
Mesmo antes de sair o resultado da cultura de fluidos, em caso de contagem de PMN ≥ 250 células/mm3, já deve ser iniciado a antibioticoterapia empírica. O diagnóstico para peritonite bacteriana espontânea será positivo em casos de contagem de células Polimorfonucleares (PMN) no líquido ascítico ≥ 250 células/mm3, resultados da cultura positivos, além das causas secundárias de peritonite serem excluídas.
Diferenciando peritonite bacteriana espontânea da secundária
A exclusão de causas secundárias é extremamente importante para um bom diagnóstico. O médico deve ficar atento, pois confundir uma peritonite bacteriana espontânea com uma secundária muda o tratamento e aumenta substancialmente a chance de mortalidade. Estudos evidenciaram que a mortalidade da peritonite bacteriana secundária fica em torno de 100% quando tratada apenas com antibiótico sem cobertura adequada, enquanto que a mortalidade da PBE quando o paciente é submetido a uma laparotomia exploratória desnecessária fica em torno de 80%.
As duas variedades da peritonite bacteriana secundária, a qual pode ser tratada cirurgicamente, são:
- Peritonite perfurante: a exemplo de uma úlcera péptica perfurada em ascite
- Peritonite não perfurante: a exemplo de um abscesso perinéfrico
A análise do líquido ascítico pode nos ajudar nessa distinção. Laboratorialmente, o diagnóstico de peritonite bacteriana secundária devem incluir, no mínimo, 2 dos 3 seguintes achados:
- Proteína total > 1 g/dL
- LDL > o limite superior do normal para soro
- Glicose <50 mg/dL
Além disso, um cultura que demonstra um grande número de diferentes formas bacterianas sugerem perfuração intestinal, enquanto que nos casos de PBE, só é visto um tipo de bactéria. A realização de imagens, como radiografia abdominal e tomografia computadorizada do abdômen poderá nos dar achados que sugerem peritonite bacteriana secundária, como a presença de ar livre ou uma fonte de infecção tratável cirurgicamente, o que justifica a realização de laparotomia exploratória.
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Tratamento da peritonite bacteriana espontânea
Já diante de uma suspeita de peritonite bacteriana espontânea, e quando o líquido ascítico tenha sido obtido para realizar a cultura, o tratamento empírico já deve ser iniciado. Como foi dito, a maioria dos casos ocorrem por infecções das bactérias intestinais E. coli e Klebsiella, ainda que possam acontecer por infecção estreptocócica e estafilocócica. Por isso, é indicado o tratamento com antibiótico de amplo espectro, até que saia o resultado da cultura.
Vale salientar que, pacientes com PBE devem descontinuar o uso de betabloqueadores não seletivos quando fazem uso, uma vez que estão relacionados com aumento da mortalidade. O tratamento com cefalosporina de terceira geração é indicado, sendo preferido o uso de cefotaxima 2g por via intravenosa a cada 8 horas. Se optar pela ceftriaxona, os pacientes devem receber 2g por dia.
Um tratamento de curta duração para PBE já é suficiente. Assim, muitos pacientes já evoluem bastante com um tratamento de 5 dias. Após esses 5 dias, ele deve ser reavaliado: se ele apresentar melhora absoluta, o tratamento poderá ser interrompido. Porém, se o paciente persistir com sintomas álgicos e/ou com febre, uma nova paracentese é feita para saber se deve ou não prolongar com o tratamento. Assim:
- Em caso de contagem de PMN < 250 células/microL, pode interromper o tratamento
- Em caso de contagem de PMN maior que o valor do pré-tratamento, deve ser considerado uma causa secundária da peritonite
- Em caso de PMN ainda elevada, mas menor que o valor do pré-tratamento, a antibioticoterapia deve ser continuada por mais 2 dias, e outra paracentese deve ser feita.
Somado a isso, como os pacientes possuem risco de evoluir para uma síndrome hepatorrenal, todos devem realizar reposição de albumina intravenosa. A dosagem indicada será de 1,5 g/kg no primeiro dia e 1 g/kg no terceiro dia de tratamento. Em caso de uso de diurético, deve ser suspenso durante o tratamento.
Conclusão
A peritonite bacteriana espontânea (PBE) é uma infecção aguda do líquido ascítico comum em pacientes com cirrose avançada. Seu diagnóstico precoce é crucial para evitar complicações graves, como choque e falência de órgãos. Fatores de risco incluem cirrose avançada, uso de inibidores de bomba de prótons e infecções anteriores. O tratamento envolve o uso imediato de antibióticos de amplo espectro. Além disso, a paracentese é essencial tanto para o diagnóstico quanto para monitorar a resposta ao tratamento.
Continue aprendendo:
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- Endocardite Infecciosa: tipos, etiologias, diagnóstico e tratamento
- Hepatites virais: causa, tipos, sintomas e tratamento
FONTES:
- DynaMed. Peritonite Bacteriana Espontânea. Serviços de informação EBSCO. Acessado em 25 de junho de 2024. https://www.dynamed.com/condition/spontaneous-bacterial-peritonitis
- Coelho AP et al. Diagnóstico diferencial entre peritonite bacteriana espontânea e secundária. Rev Med Minas Gerais 2010; 20(4 Supl 2): S81-S83
- Martins HS et al. Emergências clínicas: abordagem prática. 12a edição. São Paulo: Manole, 2017
- Biggins SW, Angeli P, Garcia-Tsao G, et al. Diagnosis, Evaluation, and Management of Ascites, Spontaneous Bacterial Peritonitis and Hepatorenal Syndrome: 2021 Practice Guidance by the American Association for the Study of Liver Diseases. Hepatology 2021; 74:1014
- McHutchison JG, Runyon BA. Spontaneous bacterial peritonitis. In: Gastrointestinal and Hepatic Infections, Surawicz CM, Owen RL (Eds), WB Saunders, Philadelphia 1994. p.455
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