Gastroenterologia
Gastroenterologia

Peritonite bacteriana espontânea: o que é, tratamento e diagnóstico

Logo Medclub
Equipe medclub
Publicado em
18/9/2024
 · 
Atualizado em
18/9/2024
Índice

É sempre importante que médicos e estudantes que lidam com pacientes cirróticos em estado avançado com ascite fiquem atentos aos sinais e sintomas de Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE). Seu reconhecimento precoce é essencial para um bom prognóstico, uma vez que seu diagnóstico tardio pode resultar em choque e falência de órgãos multissistêmicos. Nesse artigo, iremos abordar os principais aspectos dessa doença tão importante para uma adequada formação médica. 

O que é peritonite bacteriana espontânea?

A peritonite bacteriana espontânea é definida como uma infecção aguda do líquido ascítico, sem uma fonte intra-abdominal, tratável cirurgicamente, em pacientes com cirrose em estado avançado. A ascite, a qual consiste em um acúmulo anormal de líquido de aspecto seroso na cavidade peritoneal, é a principal complicação crônica nos pacientes cirróticos. 

Ilustração que compara um abdômen de um indivíduo saudável com um indivíduo doente
Ilustração que compara um abdômen de um indivíduo saudável com um indivíduo doente. Fonte: Hepcentro

As bactérias mais comuns que causam PBE são Escherichia coli e Klebsiella pneumoniae, Gram-negativos, além do Streptococcus pneumoniae, Gram-positivo. 

Fisiopatologia

O termo peritonite bacteriana espontânea foi dado porque a patogênese da doença não era muito bem conhecida. Atualmente, ocorreram evoluções no entendimento de sua fisiopatologia. Pacientes com cirrose tendem a apresentar redução da motilidade do intestino delgado, hipocloridria (redução da produção de ácido clorídrico) e aumento da permeabilidade intestinal. Diante disso, surge um ambiente favorável para o supercrescimento bacteriano, principalmente da E. coli. 

Tais bactérias podem realizar uma disseminação extra-intestinal e colonizar gânglios linfáticos mesentéricos, fenômeno chamado de translocação. A infecção do líquido ascítico se dá a partir de rompimentos dos gânglios ou pela migração bacteriana para a circulação sistêmica. 

Apesar de ser a forma mais frequente, já foram documentadas outras formas de desenvolvimento da doença. A disseminação tem maiores chances de acontecer em uma superprodução, mas não significa que não possa acontecer em números normais

Além disso, a imunidade prejudicada no contexto de cirrose e a ascite são fatores positivos para o desenvolvimento da PBE, pois gera um ambiente que facilita a persistência da infecção peritoneal.  Isso ocorre porque a doença cirrótica está relacionada com uma deficiência do complemento sérico; deficiência de opsoninas e da diminuição da função de macrófagos. 

{{banner-cta-blog}}

Fatores de risco

Como já foi explicado, a cirrose avançada é o principal fator de risco para a peritonite bacteriana espontânea. Quanto maior a pontuação do Modelo para Doença Hepática em Estágio Final (MELD), maior o risco. O cálculo do MELD é feito a partir dos valores da creatinina, bilirrubina, INR e sódio do paciente. 

 Outros fatores de risco também merecem atenção, como: 

  • Concentração de proteína total no líquido ascítico menor que 1g/dL; 
  • Episódios anteriores de PBE;
  • Concentração sérica de bilirrubina maior que 2,5 mg/dL; 
  • Desnutrição; 
  • Hemorragia varicosa;
  • Uso de inibidores de bomba de prótons;
  • Uso de betabloqueadores não seletivos. 

É preciso dizer que a hipocloridria em pacientes com cirrose está relacionada principalmente com o uso de inibidores de bomba de prótons. Além disso, a ocorrência de infecção urinária e infecções em outros sítios; procedimentos invasivos com sonda e cateteres e sangramentos gastrointestinais agudos são fatores mencionados na literatura que também aumentam a chance de apresentação do problema.

Quais são os sinais e sintomas?

A suspeita de peritonite bacteriana espontânea deve surgir nos pacientes com cirrose avançada e ascite que manifestam sintomas como febre, dor abdominal; rebaixamento do estado mental; diarreia; íleo paralítico; hipotensão e hipotermia. Desses sintomas, o mais prevalente é a febre. Muitos pacientes com cirrose avançada desenvolvem hipotermia leve. Dessa forma, uma temperatura ≥ 37,8ºC não pode ser subestimada.  

Já que, muitas vezes, os sintomas podem ser sutis, não é raro médicos se depararem com casos de PBE sem identificar nenhum sinal ou sintoma. Por isso, é válido ficar em alerta para possíveis alterações laboratoriais, condizentes com infecções, como leucocitose, acidose metabólica e azotemia. Os casos de peritonite em abdômen não ascítico causa rigidez na parede abdominal, porém nos casos de ascite, essa rigidez não é vista. 

Diagnóstico da peritonite bacteriana espontânea 

Diante da suspeita de peritonite bacteriana espontânea, o paciente deve ser submetido à paracentese para procurar evidências da doença. Porém, mesmo sem sintomas, a presença de ascite por si só já justifica a realização desse procedimento. Isso pode ser dito porque a realização de paracentese de forma precoce, ainda mesmo na admissão hospitalar, leva à detecção precoce de PBE. 

Imagem ilustrativa mostrando a técnica da realização da paracentese
Técnica da realização da paracentese. Fonte: LIOU; PRICE, 2021

A paracentese deve ser feita com o objetivo de análise dos seguintes aspectos do líquido ascítico:

  • Cultura aeróbica e anaeróbica 
  • Contagem de células e diferencial 
  • Coloração de Gram 
  • Albumina 
  • Proteína 
  • Glicose 
  • Lactato desidrogenase 
  • Amilase 
  • Bilirrubina (quando o líquido estiver laranja escurecido ou marrom)

Mesmo antes de sair o resultado da cultura de fluidos, em caso de contagem de PMN ≥ 250  células/mm3, já deve ser iniciado a antibioticoterapia empírica. O diagnóstico para peritonite bacteriana espontânea será positivo em casos de contagem de células Polimorfonucleares (PMN) no líquido ascítico ≥ 250  células/mm3, resultados da cultura positivos, além das causas secundárias de peritonite serem excluídas

Diferenciando peritonite bacteriana espontânea da secundária 

A exclusão de causas secundárias é extremamente importante para um bom diagnóstico. O médico deve ficar atento, pois confundir uma peritonite bacteriana espontânea com uma secundária muda o tratamento e aumenta substancialmente a chance de mortalidade. Estudos evidenciaram que a mortalidade da peritonite bacteriana secundária fica em torno de 100% quando tratada apenas com antibiótico sem cobertura adequada, enquanto que a mortalidade da PBE quando o paciente é submetido a uma laparotomia exploratória desnecessária fica em torno de 80%. 

As duas variedades da peritonite bacteriana secundária, a qual pode ser tratada cirurgicamente, são:

  1. Peritonite perfurante: a exemplo de uma úlcera péptica perfurada em ascite 
  2. Peritonite não perfurante: a exemplo de um abscesso perinéfrico

A análise do líquido ascítico pode nos ajudar nessa distinção. Laboratorialmente, o diagnóstico de peritonite bacteriana secundária devem incluir, no mínimo, 2 dos 3 seguintes achados: 

  • Proteína total > 1 g/dL 
  • LDL > o limite superior do normal para soro 
  • Glicose <50 mg/dL 

Além disso, um cultura que demonstra um grande número de diferentes formas bacterianas sugerem perfuração intestinal, enquanto que nos casos de PBE, só é visto um tipo de bactéria. A realização de imagens, como radiografia abdominal e tomografia computadorizada do abdômen poderá nos dar achados que sugerem peritonite bacteriana secundária, como a presença de ar livre ou uma fonte de infecção tratável cirurgicamente, o que justifica a realização de laparotomia exploratória. 

{{banner-cta-blog}}

Tratamento da peritonite bacteriana espontânea

Já diante de uma suspeita de peritonite bacteriana espontânea, e quando o líquido ascítico tenha sido obtido para realizar a cultura, o tratamento empírico já deve ser iniciado. Como foi dito, a maioria dos casos ocorrem por infecções das bactérias intestinais E. coli e Klebsiella, ainda que possam acontecer por infecção estreptocócica e estafilocócica. Por isso, é indicado o tratamento com antibiótico de amplo espectro, até que saia o resultado da cultura. 

Vale salientar que, pacientes com PBE devem descontinuar o uso de betabloqueadores não seletivos quando fazem uso, uma vez que estão relacionados com aumento da mortalidade. O tratamento com cefalosporina de terceira geração é indicado, sendo preferido o uso de cefotaxima 2g por via intravenosa a cada 8 horas. Se optar pela ceftriaxona, os pacientes devem receber 2g por dia

Um tratamento de curta duração para PBE já é suficiente. Assim, muitos pacientes já evoluem bastante com um tratamento de 5 dias. Após esses 5 dias, ele deve ser reavaliado: se ele apresentar melhora absoluta, o tratamento poderá ser interrompido. Porém, se o paciente persistir com sintomas álgicos e/ou com febre, uma nova paracentese é feita para saber se deve ou não prolongar com o tratamento. Assim:

  • Em caso de contagem de PMN < 250 células/microL, pode interromper o tratamento 
  • Em caso de contagem de PMN maior que o valor do pré-tratamento, deve ser considerado uma causa secundária da peritonite 
  • Em caso de PMN ainda elevada, mas menor que o valor do pré-tratamento, a antibioticoterapia deve ser continuada por mais 2 dias, e outra paracentese deve ser feita. 

Somado a isso, como os pacientes possuem risco de evoluir para uma síndrome hepatorrenal, todos devem realizar reposição de albumina intravenosa. A dosagem indicada será de 1,5 g/kg no primeiro dia e 1 g/kg no terceiro dia de tratamento. Em caso de uso de diurético, deve ser suspenso durante o tratamento.

Conclusão 

A peritonite bacteriana espontânea (PBE) é uma infecção aguda do líquido ascítico comum em pacientes com cirrose avançada. Seu diagnóstico precoce é crucial para evitar complicações graves, como choque e falência de órgãos. Fatores de risco incluem cirrose avançada, uso de inibidores de bomba de prótons e infecções anteriores. O tratamento envolve o uso imediato de antibióticos de amplo espectro. Além disso, a paracentese é essencial tanto para o diagnóstico quanto para monitorar a resposta ao tratamento. 

Continue aprendendo:

FONTES:

  • DynaMed. Peritonite Bacteriana Espontânea. Serviços de informação EBSCO. Acessado em 25 de junho de 2024. https://www.dynamed.com/condition/spontaneous-bacterial-peritonitis
  • Coelho AP et al. Diagnóstico diferencial entre peritonite bacteriana espontânea e secundária. Rev Med Minas Gerais 2010; 20(4 Supl 2): S81-S83
  • Martins HS et al. Emergências clínicas: abordagem prática. 12a edição. São Paulo: Manole, 2017
  • Biggins SW, Angeli P, Garcia-Tsao G, et al. Diagnosis, Evaluation, and Management of Ascites, Spontaneous Bacterial Peritonitis and Hepatorenal Syndrome: 2021 Practice Guidance by the American Association for the Study of Liver Diseases. Hepatology 2021; 74:1014
  • McHutchison JG, Runyon BA. Spontaneous bacterial peritonitis. In: Gastrointestinal and Hepatic Infections, Surawicz CM, Owen RL (Eds), WB Saunders, Philadelphia 1994. p.455

+400 de aulas de medicina para assistir totalmente de graça

Todas as aulas são lideradas por autoridades em medicina.

Artigo escrito por

Tenha acesso a todos os conteúdos totalmente de graça

Através de um simples cadastro, você estará livre para consumir o que quiser do medclub!

Dúvidas?

O que é o MedClub?

O medclub é uma plataforma 100% gratuita focada no desenvolvimento e capacitação profissional dos médicos. Com videoaulas e materiais de apoio de alta qualidade, o médico é alavancado em uma dinâmica simples, clara e objetiva de atualização e aprimoramento dos conhecimentos essenciais à sua prática.

Como o MedClub pode me beneficiar?

O Medclub te proporciona a aplicabilidade prática da Medicina Baseada em Evidências, elevando o padrão da sua prática médica. Tudo isso em um só lugar, sem perda de tempo, com informações claras e fáceis de achar no dia a dia.

O MedClub beneficia médicos de diferentes níveis de experiência?

Sim! O MedClub foi cuidadosamente concebido e desenvolvido com o objetivo de simplificar o estudo e a atualização médica, proporcionando maior segurança nas práticas e procedimentos. Nossa plataforma visa melhorar os resultados diários dos médicos, abordando as principais preocupações independentemente do estágio de sua carreira.

Nós utilizamos cookies. Ao navegar no site estará consentindo a sua utilização. Saiba mais sobre o uso de cookies.