Por Ellen Kosminsky
Os sangramentos na primeira metade da gestação são queixas frequentes no pronto-socorro, e causam importante angústia nas gestantes. Por isso, reconhecer como realizar o diagnóstico diferencial entre as principais condições que provocam os sangramentos é crucial para o manejo destas pacientes. Por isso, neste texto focaremos nestes aspectos, e mais especificamente nos aprofundaremos nas molas hidatiformes.
Quais as principais causas do sangramento na primeira metade da gestação?
As principais causas de sangramento na primeira metade da gestação são o aborto, a gestação ectópica e a doença trofoblástica gestacional (DTG).
Abortamento
O abortamento pode ser definido como:
- 1) perda do feto até a 22ª semana da gestação, ou;
- 2) perda do feto com peso < 500 g, ou;
- 3) perda do feto com < 25cm.
As principais causas são os defeitos genéticos, podendo ser somáticos ou cromossômicos, com destaque para as aneuploidias, especialmente as trissomias.
E mais, as infecções perinatais, uso de drogas recreativas e doenças maternas - como a síndrome do anticorpo antifosfolípide e o diabetes mellitus materno descompensado durante a organogênese - e o hipotireoidismo também são causas importantes de abortamento. Bem como as alterações uterinas, como a incompetência istmo cervical e a síndrome de Asherman.
Por fim, os abortos podem ser classificados em precoces (<12 semanas) e tardios (>12 semanas). E ainda, em esporádico ou habitual/recorrente, sendo esse último caracterizado por pelo menos 3 abortos consecutivos.
Gestação ectópica
A gestação ectópica (GE) é definida pela implantação do embrião fora da cavidade uterina. Cerca de 95% destas implantações ocorreram nas tubas uterinas e, em 80% dessas, na ampola das tubas.
São fatores de risco para a GE as alterações da anatomia ou da função tubária. Dessa forma, cirurgias tubárias prévias, aderências pélvicas e a doença inflamatória pélvica são consideradas fatores de risco, pois alteram a anatomia. E mais, a história de gestação ectópica anterior, etnia negra, endometriose e reprodução assistida.
O tabagismo e o uso de anticoncepcionais de emergência, uma vez que dificultam o transporte ciliar. Por fim, a idade > 35 anos e o uso de DIU também são fatores que predispõem a este tipo de gestação. Esse último, apesar de diminuir o risco absoluto de gestações indesejadas, aumenta o risco relativo.
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Doença trofoblástica gestacional
A doença trofoblástica gestacional (DTG) é definida pela proliferação anormal do trofoblasto. Pode ser classificada em DTG benigna - sendo essa representada pela mola hidatiforme - ou maligna. Observe a tabela abaixo.
Os principais fatores de risco para a mola hidatiforme (MH) são a história prévia de MH, idade > 35 a 40 anos, abortamentos prévios, tabagismo e inseminação artificial. Para mais, a mola pode ser classificada em completa e incompleta. Na primeira, os óvulos vazios ou com cromossomos inativados são fecundados por um espermatozóide, que será duplicado. Entretanto, devido à presença exclusiva de cromossomos paternos, não haverá formação de tecido fetal.
Já na mola incompleta, o óvulo apresenta cromossomos maternos ativados. Entretanto, esse será fecundado por dois espermatozóides, e apresentará 69 cromossomos, dos quais um é o conjunto materno e dois são os conjuntos paternos. Assim, devido a presença de cromossomos paternos no óvulo fecundado, haverá formação de tecido fetal.
Como realizar o diagnóstico do Sangramento na primeira metade da gestação?
Abortamento
O diagnóstico do abortamento é predominantemente clínico, sendo caracterizado pela presença de sangramento e dor. Deve ser classificado quanto ao tipo de abortamento:
Ameaça de abortamento
Ocorre quando o feto não é expelido do útero, havendo apenas sangramento. O colo se encontra fechado, os batimentos cardíacos fetais (BCF) estão presentes, e o útero é compatível com a idade gestacional (IG).
Abortamento completo
Ocorre quando há expulsão do material ovular. O colo está fechado, o útero vazio ao ultrassom (USG), e apresenta tamanho reduzido para a idade gestacional. A espessura endometrial menor do que 20mm é considerada uma evidência de abortamento completo.
Abortamento retido
Quando há óbito do embrião, mas o feto não foi expelido. O colo se encontra fechado, o BFC está ausente, e o útero pode ser compatível ou reduzido para a IG.
Abortamento inevitável
Quando o abortamento é presenciado pelo médico. O colo encontra-se aberto, o BCF pode estar presente ou ausente, e o útero pode estar compatível ou não com a IG.
Abortamento incompleto
Quando ocorre expulsão de parte do material ovular, sendo essa incompleta. O colo encontra-se aberto, há restos ovulares visualizados na USG e o útero encontra-se reduzido para a IG.
Abortamento infectado
O abortamento infectado é um tipo de abortamento incompleto. Há sinais de infecção, como taquicardia materna, hiper-reatividade uterina e secreção vaginal com odor/purulenta. Entretanto, a febre é o principal sinal, e deve sempre ser pesquisado.
Gestação ectópica
O diagnóstico da GE é baseado em três pilares: quadro clínico, valores de ß-hCG e na USG. Assim, a hipótese de gestação ectópica deve surgir quando a paciente apresenta quadro agudo de dor abdominal intensa, associado a sangramento discreto, durante a primeira metade da gestação.
Outros sinais e sintomas, como a presença de massa anexial palpável, irritação peritoneal e o sinal de Proust (grito de Douglas) - definido pela presença de dor intensa durante a palpação do fundo de saco posterior - são sugestivos. E mais, a dor escapular devido a irritação do nervo frênico, responsável por irrigar o diafragma por sangramento na cavidade abdominal, também levanta suspeitas para o quadro.
Para mais, é esperado que até a 10ª semana o valor do ß-hCG duplique a cada 48 horas. Entretanto, neste tipo esse aumento exponencial não ocorre. Esse exame é particularmente útil na janela discriminatória do ß-hCG, definida pela detecção do hormônio no exame de sangue, mas sem evidência do saco gravídico na ultrassonografia.
Doença trofoblástica gestacional
O diagnóstico da DTG é clínico, mas é apenas confirmado após o laudo histopatológico. Para mais, por haver uma reprodução excessiva e anormal dos trofoblastos, há também uma secreção excessiva de ß-hCG, especialmente nos quadros de mola hidatiforme completa, devido ao quadro genético mais grave. Assim, quadros de hiperêmese podem ser observados.
Para mais, o ß-hCG apresenta uma subunidade α, semelhante a subunidades observadas em outros hormônios, como o TSH e o LH. Dessa forma, haverá uma hiperestimulação da tireóide - cursando com hipertireoidismo - e das células teca dos ovários - cursando com cistos ovarianos multiloculares, denominados cistos tecaluteínicos.
Para mais, a proliferação anormal de trofoblastos apresenta aspecto vesicular, denominado “em cachos de uva”. Com a multiplicação excessiva, há necrose e descamação dessas vesículas, produzindo os sangramentos intermitentes, também descritos como “em suco de ameixa”, e o útero fica aumentando e diminuindo o seu tamanho (útero em sanfona). Além disso, o útero comumente está aumentado para a idade gestacional. Por fim, a saída das vesículas pelo canal vaginal é patognomônico da DTG.
Na USG é possível observar a presença de material amorfo e homogêneo, com áreas anecoicas, a “tempestade de neve”. Já na mola incompleta, o material fetal também pode ser evidenciado. Por fim, a presença deste material amorfo pode provocar quadros de pré-eclâmpsia grave e precoce na paciente e, na mola hidatiforme completa, o risco de evolução para a doença maligna é maior.
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Tratamento das causas de sangramento na primeira metade da gestação
Abortamento
Na ameaça de abortamento e no abortamento incompleto, não há evidências científicas que comprovem eficácia de qualquer tratamento. Por isso, recomenda-se a conduta expectante.
Já no abortamento retido e incompleto, recomenda-se a conduta conservadora, aguardando o aborto espontâneo por até 4 semanas. Isso porque o risco de sangramento na primeira metade da gestação e infecção são menores nesses casos. Todavia, o esvaziamento uterino é também uma possibilidade terapêutica.
Nos abortamentos inevitáveis e infectados, o esvaziamento uterino é recomendado. É possível utilizar drogas, como o misoprostol e a ocitocina. Ou ainda, o esvaziamento pode ser cirúrgico, através da aspiração manual intrauterina (AMIU) em fetos < 12 semanas, e da curetagem em fetos > 12 semanas.
A curetagem está indicada nesses casos porque, após as 12 semanas o feto já apresenta núcleos de calcificação, aumentando os riscos de perfuração durante a AMIU. No abortamento infectado, realiza-se antibioticoterapia empírica com clindamicina associada a gentamicina, para a cobertura de gram positivos, gram negativos e anaeróbios, podendo esse esquema ser também associado à penicilina G ou ampicilina.
Gravidez ectópica
O tratamento dessa causa de sangramento na segunda metade da gestação pode ser expectante, medicamentoso ou cirúrgico. O tratamento expectante está indicado nas pacientes hemodinamicamente estáveis, com ß-hCG < 1.000 a 1.500, preferencialmente com curva descendente nos valores do hormônio, e saco gravídico pequeno (< 3.5cm).
Já o tratamento medicamentoso é indicado para pacientes estáveis, com ausência dos BCF, ß-hCG < 5.000 e saco gestacional < 3.5cm. O medicamento de escolha é o metotrexato, um antagonista do ácido fólico, que interfere na produção das bases nitrogenadas e, portanto, na divisão celular.
Sendo assim, é eficaz para tecidos como o trofoblasto, que apresentam alta taxa de multiplicação. Após o uso da medicação, espera-se que os níveis de ß-hCG diminuam ao menos 15% dentro da primeira semana, devendo ser dosados uma vez por semana até que a detecção do hormônio seja negativa.
Para o tratamento cirúrgico, pode-se realizar a laparoscopia ou a laparotomia. A laparoscopia é indicada para pacientes estáveis, com saco vitelínico ≥ 3.5cm ou ß-hCG > 5.000. Já a laparotomia é indicada para pacientes hemodinamicamente instáveis ou com saco > 5cm.
Doença trofoblástica gestacional
O tratamento padrão da DTG consiste na aspiração do útero, podendo essa ser através da vacuoaspiração pela AMIU ou pela aspiração elétrica. Objetiva-se a retirada de todas as vesículas, visto que a permanência de apenas uma na cavidade uterina pode gerar proliferação trofoblástica e retorno do quadro.
Após a aspiração, dosa-se o ß-hCG de forma seriada semanalmente ou quinzenalmente, até que os valores do hormônio estejam zerados por três dosagens consecutivas. Após isso, a dosagem deve ser feita mensalmente por 6 meses.
Além disso, deve-se investigar possíveis metástases, através do exame especular, para avaliar possível metástase vaginal, do raio-X de tórax, para identificar possíveis tumores de tórax, e através da USG, para avaliar invasão do miométrio/pelve. Por fim, indica-se realizar a anticoncepção eficaz, para evitar o aumento do ß-hCG novamente e prejudicar a interpretação do hormônio na dosagem seriada.
Conclusões
As principais causas de sangramentos na primeira metade da gestação são o abortamento, a gravidez ectópica e a doença trofoblástica gestacional. Saber como realizar o diagnóstico diferencial destas causas de sangramento, bem como o seu manejo, é de fundamental importância para o médico especialista.
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FONTES:
- Tratado de Ginecologia FEBRASGO / editores Cesar Eduardo Fernandes, Marcos Felipe Silva de Sá; coordenação Agnaldo Lopes da Silva Filho...[et al]. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2019.
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